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A Des-Ação de Del Pilar Sallum
1/2/1997
 

Gestos repetitivos de enrolar e desenrolar parecem, à primeira vista, singelos, remetendo á brincadeiras infantis de amarrar e soltar os dedos e as mão para lidar com a oposição prisão/liberdade. Aludem também ao trabalho de tricotar, utilizando novelos de fios e lãs, atividade revestida com a aura da domesticidade feminina. Podem associar-se à imagem de dedos amarrados para representar a memória de alguma ação futura, que não pode ser esquecida. Ou ainda lembrar atadura, aplicadas a um corpo enfermo, em uma ato de cuidado e redenção. 

No entanto, encampados pela repetição exaustiva e circular dos atos de enrolar e desenrolar, que se expandem e se retraem, espessam-se e dissolvem-se na falta de resolução, os gestos tornam-se metáforas de perversão. A simultaneidade de duas ações paralelas no tempo e opostas no sentido produz uma síntese nilhilista. Os gestos anulam-se, pervertendo a perspectiva de uma construção cumulativa. Evocam vazios. 

As mãos que se enrolam e se desenrolam nos fios metálicos são metonímias de um corpo que opera de contramão da produção capitalista. Elas acenam a transgressão da ideologia da linha de montagem. Fazem e desfazem em proporções idênticas e simultâneas. 

Como discute o filósofo Jean Baudrillard, na cultura pós-moderna, o ato de construção gera a respectiva desconstrução de seu sentido. Ele argumenta que a contemporaneidade traz em si a dissolução das noções de tempo e de espaço público. 

O objeto, então, não é mais o espelho do sujeito; a causalidade perde-se. A visualidade de "cena" é substituída por uma informação "ob-cena" (1). O que se vê não é a mão que enrola ou desenrola fios metálicos, mas sim os motores que gestam essa operação desconstrutiva. A obra dá lugar não apenas ao texto, mas ao subtexto, às entrelinhas invisíveis que se delineiam no efeito semi-hipnótico produzido pela visão fixa sobre o binômio ação-contração. 

O vídeo-performance é um prolongamento do corpo-mais especificamente das mãos-escolhido consistentemente pela artista como veículo para a construção de um trabalho intimista e constrangedor, fragilizado e fragilizante. 

Em Ataduras, série anterior de trabalhos, Sallum moldou fios metálicos, obsessiva e espessamente, ao redor de seus dedos e mãos. Desse modo, eles se transformaram em moldes, molduras, suportes. Fios moldados, enrolados e ocos, eles se tornaram esculturas sobre o vazio, a solidão, a memória da fisicalidade que os produziu. 

Esvaziado do conglomerado metálico, o corpo da artista desintegra-se, vira passado. As esculturas produzidas tornam-se, então, receptáculos de memórias, recipientes de lembranças, casulos nulos de vida. 

No vídeo, a experiência de construção material das esculturas-ataduras, realizada pela ausência física, radicaliza-se. Aqui, o processo que se realiza no tempo não chega a lugar algum. 

A temporalidade do enrolar desenrolar é aprisionada, como uma melodia sobre o vinil riscado. A repetição da ação ziguezagueante determina uma relação na qual qualquer vestígio de causalidade se apaga. Dessa translucidez da cena, emerge uma relação esquizofrênica; pela repetição, nos tornamos íntimos e cúmplices desse enrolar/desenrolar autista. Com nossos olhares, desencantados com as narrativas lineares propostas pelos sistemas de produção, estabelecemos uma identificação promíscua com aquele corpo compulsivo, desprovido de possibilidade de escapar de sua vazia e incessante trajetória. 

(1) Jean Baudrillard em “The Ecstay of Communication” ,pp.126 a 134. The Anti Aesthetic-Essay on Postmodern Culture, ed. De Hal Foster. (Seattle: Bay Press, 1983). 

(Catálogo). 97 Panorama de Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna - São Paulo; 1997

 

Katia Canton

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Del Pilar Sallum (english)

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