A Memória da Mão
1/2/1998
A mão que coloca o homem em contato com a duração do pensamento, é ação: pega, cria e, às vezes, pensa.É sobretudo graças a ela que o homem toma posse do mundo. Se a vista desliza por sobre o universo, a mão o toca; sabe determinar o peso de um objeto e sua textura; define o vazio do espaço e o cheio das coisas que o ocupam. A superfície, o volume, a densidade, o peso são fenômenos essencialmente táteis. O tato anima as forças misteriosas da natureza. Sem ele, ela se pareceria com as paisagens da câmara escura-leves, planas e quiméricas.
É pela mão que o homem criou um universo concreto, diferente da natureza. É pela mão que o homem se fez artista: “ toca, apalpa, calcula o peso, mede o espaço, modela a fluidez do ar para nele prefigurar a forma, acaricia o invólucro de todas as coisas, e é com a linguagem do tato que compõe a linguagem da visão-um tom quente, um tom frio, um tom pesado, um tom vazio, uma linha dura, uma linha suave.” A mão toca o universo, sente-o, transforma-o, acrescentando um novo reino àqueles da natureza. Criando um universo inédito, ela deixa sua marca em todo lugar. Confronta-se com a matéria que transforma, com a forma que transfigura. Educadora do homem, ela o multiplica no tempo e no espaço.(13)
A reflexão de Focillon sobre o poder criador da mão aplica-se claramente à ação de Del pilar Sallum. Suas mão moldam formas escultóricas de maneira peculiar: enrolando e desenrolando fios de latão em volta dos dedos e deixando neles sua marca física e química. Mas não é apenas escultura que o gesto da artista produz. As ações de enrolar e desenrolar deixam seu vestígio nas mãos que manuseiam a matéria, criando uma gravura (14) peculiar, a um só tempo concreta e metafórica.
Ao enrolar e desenrolar fios, Del Pilar Sallum atualiza a gestualidade feminina, feita de repetição e paciência, e propõe um caminho, ou melhor, um labirinto, no qual está inscrita uma temporalidade concreta, física, que é fundamentalmente duração. Suas ações oscilam entre o excesso e a sobriedade: se as esculturas se compõem por acumulação, as gravuras registradas em fotomontagem e vídeos trazem a marca de linhas suaves, por vezes imperceptíveis, dotadas de um ritmo próprio, no qual a repetição revela como uma memória corporal e psicológica ao mesmo tempo.
Com seus gestos repetitivos, que constroem e desconstroem sucessivamente, Del Pilar Sallum parece realizar aquela não arquitetura do mundo, historicamente atribuída á mulher (15) Trata-se, porém, de uma não-arquitetura partícula, que estrutura a forma e oculta o desígnio conformador, interessada antes no vestígio do que na captação do gesto concreto. Ou que, pela multiplicação e pela inversão, remete a um vazio que só o tempo, entendido como percurso, consegue preencher. A verdadeira matéria das operações de Del pilar Sallum acaba sendo seu trabalho solitário e silencioso, no limiar de uma exasperação que a memória da mão converte em atitude artística. Uma memória inscrita na matéria e na pele, ambas sujeitas a um processo de transformação, no qual o elemento determinante é, sem dúvida, o confronto entre o simbólico e o concreto, entre um gesto arquetípico e excessivo e um fragmento corporal, que busca a expansão das próprias possibilidades e dos próprios limites. Uma memória que se configura a partir do interâmbio contínuo entre matéria e corpo, graças ao qual uma e outro se transformam em energia física e simbólica ao mesmo tempo.
(13)Henri Focillon, "Éloge de la Main", in Vie des Formes, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, pp. 101-28.
(14) Maria Izabel Branco Ribeiro, " Del Pilar Sallum", in Del Pilar Sallum-Rosa Esteves, São Paulo, Itaúgaleria, 1995.
(15) Boetti, "La Memória delle Mani", op. cit. , p. 157.
A memória da mão in Percorrendo veredas: hipótese sobre a arte brasileira atual in Revista Usp, São Paulo, nº 40, p. 68-77, dezembro/fevereiro 1998-99
Annateresa Fabris
Em algum momento antes de mim – a inscrição brumosa da transmissão
At some point before me - the misty inscription of the transmission
The W Contemporary Art Center opens its programming in 2021 with artists Del Pílar Sallum and Weimar