BRANCO NA NOITE
Na presente tese há uma investigação densa, bem alicerçada e fundamentada sobre os conceitos que norteiam a obra de Pilar no campo das linguagens visuais, dentro da arte contemporânea. O entendimento do corpo como o lugar das suas experiências, a memória como um receptáculo das suas sensações presentes e passadas. Seu processo de criação sugere uma articulação de todo um território de reordenamento da sua existência, memórias, portanto revividas com a intensificação de seus afetos e dores, tornando o espectador cúmplice de sua intimidade. Com isso, percebe-se a necessidade de lidar com a suspensão do tempo, principalmente desse tempo do cotidiano para revalorizar todo um fluxo de vivências diárias, de onde são extraídos resíduos que vão dando espessura ao tempo de sua obra. Como solução poética, Pilar lida com o apagamento da realidade, mais fortemente nas suas primeiras obras apresentadas, como “Em silêncio I”, “Histórias Secretas”, “Breves Instantes”, onde tenta quase negar a ideia do objeto ou da sua materialidade em 3D, e fora da sua função de material, massa e volume. Busca realçar a ambiguidade entre o corpo físico e o incorporal das coisas, aquilo que remete ao vazio, ao esvanecimento da matéria
{...}
In the present thesis there is a dense investigation, well founded and grounded on the concepts that guide Pilar's work in the field of visual languages, within contemporary art. Understanding the body as the place of your experiences, memory as a receptacle for your present and past sensations. Its creation process suggests an articulation of an entire territory to reorganize its existence, memories, therefore relived with the intensification of its affections and pains, making the viewer complicit in its intimacy.
With this, it is perceived the need to deal with the suspension of time, especially this time of daily life, in order to revalue a whole flow of daily experiences, from which residues are extracted that give thickness to the time of his work. As a poetic solution, Pilar deals with the erasure of reality, more strongly in his first works presented, such as "In silence I", "Secret Stories", "Brief Briefs", where he almost tries to deny the idea of the object or its materiality in 3D, and outside its function of material, mass and volume. It seeks to highlight the ambiguity between the physical and the incorporeal body of things, what refers to the void, to the fading of matter {...}
Ivanir Cozeniosque
Profª. Draª da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes, desde 1990.
Atual coordenadora da GAIA - Galeria de Arte do IA. Artista visual com várias exposições individuais e coletivas tanto a nível nacional e internacional; com ênfase nas linguagens da escultura, xilogravura e fotografia.
Ivanir Cozeniosque
Profª. Draª of the State University of Campinas, Unicamp, of the Department of Visual Arts of the Institute of Arts and of the Postgraduate Program in Arts, since 1990.
Texto Completo
Na presente tese há uma investigação densa, bem alicerçada e fundamentada sobre os conceitos que norteiam a obra de Pilar no campo das linguagens visuais, dentro da arte contemporânea. O entendimento do corpo como o lugar das suas experiências, a memória como um receptáculo das suas sensações presentes e passadas. Seu processo de criação sugere uma articulação de todo um território de reordenamento da sua existência, memórias, portanto revividas com a intensificação de seus afetos e dores, tornando o espectador cúmplice de sua intimidade. Com isso, percebe-se a necessidade de lidar com a suspensão do tempo, principalmente desse tempo do cotidiano para revalorizar todo um fluxo de vivências diárias, de onde são extraídos resíduos que vão dando espessura ao tempo de sua obra. Como solução poética, Pilar lida com o apagamento da realidade, mais fortemente nas suas primeiras obras apresentadas, como “Em silêncio I”, “Histórias Secretas”, “Breves Instantes”, onde tenta quase negar a ideia do objeto ou da sua materialidade em 3D, e fora da sua função de material, massa e volume. Busca realçar a ambiguidade entre o corpo físico e o incorporal das coisas, aquilo que remete ao vazio, ao esvanecimento da matéria. Suas necessidades e vontades artísticas são feitas por experimentações entre linguagens, as quais conferem ao todo de sua obra um caráter de investigação em diversas linguagens, presentes nesta sua exposição na GAIA: fotografias, vídeos, desenhos, livros-objetos... O texto se estrutura num ir e vir, trazendo à tona reflexões tanto artísticas como existenciais e procura se afastar como num pano de fundo, para trazer ao primeiro plano à própria obra. Sempre num entrelaçamento entre pensamento e criação, teoria e obra artística. 232 Quais forças, tensões e articulações podemos perceber como potência e viabilização para a execução de sua obra? Já que Pilar nos trás a problematização do corpo, como pertencimento ao mundo e também, como matéria prima de onde extrai sua poiésis; penso ser importante levantar alguns pontos fundamentais que trazem uma ótica mais assertiva, não apenas sobre a contemporaneidade da obra, mas como isto se dá nesta tese de doutorado.
· status do real, do imaginário e do onírico;
· significado de imagem especular e invertida;
· corpo físico como corpo orgânico e espectro, o fantasmagórico e a desmaterialização;
· autorrepresentação como dessemelhança;
· o estranhamento do EU como simulacro e a perda da aura;
· o self como um processo que nunca se completa;
· retratante e retratado;
· o duplo na aparência de um outro corpo;
· compreensão do duplo e o que está dormente;
· velamento e identidade;
· dilaceração e desfiguração;
· opacidade, apagamento da figuração, camuflagens;
· esvaziamento e aniquilamento do eu olhado;
· desejar o vazio, o inefável, pretender-se transparente e apagar os próprios rastros;
· negação de si e a renúncia de uma presença do seu corpo;
· o apagamento como pegada mínima, como retirada de algo, como prolongamento do vazio no incorpóreo;
· a desaparição não como tema, nem assunto, mas como verdadeira matéria prima no constructo da sua obra, o ponto zero e o princípio de formas em imagens;
· o uso do espelho, da fotografia na elaboração de um espaço cenográfico como uma performance existencial e intimista;
Diante desses conceitos e reflexões considero válido adentrar melhor o universo feminino de Pilar observando também os elementos utilizados no seu próprio fazer artístico: espelho, tecidos, rendas, véus, seda, papéis, nanquim, lugar, câmera fotográfica, lentes, luzes, vídeo, desenho, cadernos, celulares, panejamento... Extraio uma frase da pesquisadora para reforçar esses pontos: “teço a escrita como um desenho, tramo e preencho palavras no espaço branco e vazio, cuja função é tecer uma rede de pensamentos que esculpem no intelecto imagens voláteis e furtivas”. 233 Como artista, algo intrigou-me nessa exposição e tese de Pilar, principalmente procurando ater-me ao olhar de suas imagens, mais do que ficar presa ao texto. Como se deu este caminhar pelo aspecto da luz? Suas imagens iniciais têm a presença de uma luz intensa, imagens claras, nas quais a presença do branco com tons de cinza, bem suaves, são predominantes. São apagamentos, veladuras, texturas, mas numa procura por ocultar sua identidade, seu próprio corpo. Imagens diurnas, de uma luminosidade quase de neblina e esfumaçamento. Depois desse percurso, ela nos apresenta trabalhos que são fotografias desenhadas à nanquim, com uma série de linhas; emaranhados e rendamentos, onde o preto, muito presente, remete a imagens da noite. Como sair do dia para a noite? Do branco de um universo quase mítico, surreal para a presença viva e dramática de seus últimos desenhos? Na série “Camouflage”, procura velar – não mais com o tecido –, o que antes ocultava totalmente sua identidade. Agora ela está posta, porém existia ainda a necessidade de dificultar ao espectador sua identidade, a fisionomia de alguém, então ela agora via emaranhados de linhas e de traços de um intenso negro, feitos à nanquim. Criando um labirinto próprio numa geometrização de arabescos, numa gestualidade só sua. Imagens da noite em contraponto aonde começa seu doutorado, que são imagens do dia, claras, translúcidas, por isso o caminhar da luz nesta análise. Até no uso do material, como no momento da captação das imagens (seu corpo recoberto com tecidos lisos ou rendados, sempre brancos) e na escolha do suporte para as impressões – papel branco algodão 100% Fine Arts, papel vegetal, papel fotográfico sobre acrílico –, tudo isso confere e potencializa o dia, a claridade, a extrema luz, até então externada. Temos o branco em direção ao preto. Temos o dia em se fazendo noite. Esse percurso intrigou-me muito e procurei atentar-me a uma reflexão sobre isso e o quê essas imagens revelam. Há uma fisionomia, uma identidade, um corpo que não quer se dar a ver. Há inconscientemente, um ocultamento de quem EU SOU? Há a necessidade de se manter num anonimato, por fragilidade ou privacidade? Uma vez que hoje a intercomunicação midiática nos expõe a todos e em qualquer lugar? Porque esse ocultamento? Pilar nos apresenta um caminho inverso, busca a noite porque aqui ela acredita haver a possibilidade de assumir o seu EU, pois é onde pode apresentar sua identidade revelada. 234 Nas séries “Sussurros”, “Camouflage”, “Aqui por acaso”, “Um entre muitos” há a presença de uma fisionomia de um ser identificável, que tem nome e uma história. Não é o véu da ilusão, a recobrir corpo e identidade, mas entra a coragem de um desnudar-se, de um revelarse e de um dizer: quem eu sou. O preto vai ganhando força, se fazendo presente até que haja a necessidade de tecer, de fabricar, de depositar, de tentar reter a luz, de tentar ver o que está ali diante de si, ou melhor dizendo, dentro de si. Devido a uma consciência, ou visão já tão acostumada ao ofuscamento de si, da sua existência e a do outro com a luz, parte por vivências próprias e por analogia a caminhar e a encontrar-se com a noite, com o negro e assim confiante, a adentrar na escuridão; colocar-se lado a lado com ela, desenhar seus próprios fios de Ariadne, da escuridão labiríntica. E vai então se abrindo para sua própria identidade, agora já revelada, como no processo fotográfico onde o material fílmico precisa de uma sala escura para a imagem se revelar. Não há mais veladuras, nem translucidez, nem ocultamento. Há um pertencimento de si para consigo mesma, um desnudar-se para o outro, um olhar para diante do espelho de frente para si mesma, não mais obliquamente, nem da materialidade que venha ocultar seu corpo e seu rosto. Foram tantos os fluxos ininterruptos, de formas cobertas pelos tecidos e rendas que ela passa a externar isso em seus vídeos. Esses vídeos são como desdobramentos necessários do seu fazer, onde deixa transparecer apenas resquícios de uma realidade. Podemos pensar que a tese de Pilar tem suas pistas e formalização dentro do campo da fenomenologia e do pensamento de Merleau-Ponty. Há uma interação entre a percepção das coisas do mundo, as quais não são isoladas da sua própria corporalidade, vivências e percepção de quem as vê. Existem formas de conhecimento do mundo que não se dão apenas pelo empirismo científico, mas também entram os órgãos dos sentidos de quem olha, toca, cheira. Talvez, pensar no corpo carnal do mundo de Merleau-Ponty e sua abordagem sobre Ser Bruto, pode nos ajudar a esclarecer a gênese da obra de Pilar e sua individualidade. Há um querer e uma necessidade de expressar sentimentos e vivências pelos estados diferenciados da própria materialidade, justamente através das suas qualidades desconhecidas 235 tão bem reafirmadas por Jacques Rancière: “o ser viaja nos labirintos e recolhe os vestígios e devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante”. Pilar busca suas afinidades eletivas em artistas que de alguma forma apresentam esse questionamento sobre a identidade do ser e estar no mundo. É como se estivesse o tempo todo questionando o embaçamento da realidade dos fatos e a realidade da alma, numa analogia com o apagamento da matéria. Apagar, ocultar a realidade aparente, para dali emergir uma outra realidade, mais profunda, desconhecida, revelando o mistério contido em cada matéria, cada gesto, cada partícula do universo como podemos prever no poema de Rainer Maria Rilke: “ó, eu que quero crescer, olho para fora e a árvore cresce em mim”. Projeto-me para fora, olho para o mundo como uma similitude de minha própria corporalidade, espelho-me no que está fora e vivo o que está dentro de mim. Só assim se pode entender o poema de Rilke: “a árvore cresce em mim”. O percurso de Pilar saindo da luz para a escuridão, do dia para a noite, do branco para o negro, traz uma chave importante para a questão levantada por Merleau-Ponty: “que laço amarra num tecido único, experiência, criação, origem e ser”. Penso que Pilar se utiliza de uma fissura dentro da noite para trazer entendimento de si, quando adentra a noite para revelar sua identidade. E nada melhor para fechar essa minha interlocução do que apoiar-me no poema de Pablo Neruda, sobre a noite, abrindo assim momentos incorporais da vida a cada um de nós.
Noite – Pablo Neruda
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
Há um poço
Onde a claridade está presa.
Há que sentar-se na beira
Do poço da sombra
E pescar luz caída
Com paciência.
Ivanir Cozeniosque
Profª. Draª da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes e do Programa de Pós-Graduação em Artes, desde 1990.
Atual coordenadora da GAIA - Galeria de Arte do IA. Artista visual com várias exposições individuais e coletivas tanto a nível nacional e internacional; com ênfase nas linguagens da escultura, xilogravura e fotografia.
Em algum momento antes de mim – a inscrição brumosa da transmissão
At some point before me - the misty inscription of the transmission
The W Contemporary Art Center opens its programming in 2021 with artists Del Pílar Sallum and Weimar