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Em algum momento antes de mim – a inscrição brumosa da transmissão 

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Quero que se ocupem do que é meu, 

do que me é próprio e não de mim, 

pois não amo a mim mesma (pessoalmente), 

amo o que me é próprio 

(e sendo assim pode ser também do outro). 

Marina Tsetáieva) 

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Percorrer o trabalho de Del Pílar Sallum é revirar a questão da memória e da invenção, a partir de uma construção artística que busca a apresentação de si, para além da mera representação. “Em algum momento antes de mim” abriga o ponto fulcral de seu percurso. 

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No livro, como uma linguagem poética e onírica, a memória comparece através de intervenções em fotos de família, à maneira proposta pela psicanálise: como um conjunto de traços que constituem o inconsciente. Tanto a fotografia quanto as intervenções escritas são maneiras de lidar com aquilo que marca, uma forma de colocar em cena – pela via do silêncio e do ruído, da ausência e da presença – os traços deixados em nós. Seu trabalho se apresenta sintetizado como um caminho do eu ao outro. No contágio com as imagens do passado, fotografias de família e objetos herdados, a artista se desmancha, se refaz e, ao recriar, redesenha algo como um presente endereçado ao mundo. 

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Segundo Jacques Lacan, ao ser inserido na ordem simbólica que existe antes mesmo de nascer, o sujeito ocupa um lugar no sistema de relações. Del Pílar tensiona esse lugar afetivo, com pequenos poemas prenhes de uma pulsação misteriosa que atravessa o livro, e também com páginas em branco que anunciam uma suspensão e uma invenção sempre em vias de nascer, apontando para uma fina relação do sujeito com o inconsciente. Nesta seara, pulsa uma invenção em que, ao revisitar as fotografias de ancestrais e da sua história, a artista entra em contato com sua marcas e surge dividida e desejante. Os espaços em branco evocam momentos em que retornamos o olhar ao que aconteceu, em vácuo reflexivo ou suspensão silenciosa. Assim, o livro não se encerra na sua história pessoal. 

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Entre fotografias, a escrita sintética e aguda e páginas a preencher, a artista se revela. Em meio a véus e enigmas, borramentos e névoas, desalojada e desabrigada de ideias de identidade fixa e estanque, atingida pelas coisas a ponto de também tocá-las e delas guardar uma vibração íntima, Del Pílar escreve e cria. De uma experiência-limite, radicalmente coloca em questão o tremor de um território em que o escondido e o indizível devem aflorar com a imagem e arrebentá-la por dentro, propiciando uma aparição, em um fluxo que vagueia solto e tenta encontrar ponto de ancoragem na indeterminação. Aqui a história pessoal é também a de toda a humanidade. 

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Em páginas em branco e vazios intercalados por presenças, em fotografias com intervenções e exatas palavras, o olhar da artista mira o avesso das coisas e nos chama a dar às histórias sentidos outros. De um ato biográfico se constrói e se revela uma intimidade que não franqueia o que é singular e intransferível e também não se reduz a “si mesmo”, abrindo-se à pura diferença e à presença da alteridade.

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Del Pílar é filha de italianos que, depois da Segunda Guerra Mundial, passaram pela Espanha e imigraram ao Brasil. Concebida na Europa e nascida brasileira – uma artista entre muitos mundos – ela conta a história dos pais e nos revela uma zona de opacidade para além do mero relato ou representação. Seu trabalho sustenta o território do íntimo como uma ética, que não oblitera o fora de campo. Ao narrar-se a si própria e se apresentar através de sua história, o que se coloca é o “eu” enquanto ausência e, também, uma espécie de erosão de si mesma. Por isso, ela mancha e macula imagens prontas, nelas inserindo – por borrões, apagamentos, veladuras, sobreposições, colagens – tremores e vacilações que, a partir de um novo ponto, recontam narrativas. 

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O “eu” é estilhaçado desde o título do livro, desde “algum momento antes de mim”, instante que se situa em uma zona opaca da memória, em fotografias que presentificam algo brumoso: a mãe ao fogão, o rosto borrado do pai, uma parte do rosto da avó, um voo de paraquedas, um sapato. A lógica do detalhe, o assombro e a perplexidade atravessam as dimensões temporais e espaciais, através de intervenções que provocam vacilos na narrativa oficial das fotografias. 

A avó materna da artista, Linda Togna Berardi, era pintora, Muito do seu traço de nanquim conversa com as telas da avó, em um diálogo subterrâneo e poético. A artista sempre usou procedimentos como a veladura e nunca se revelou por inteiro, e suas palavras tocam o mistério que sempre tateou – “o destino muda as cores do passado” ou “a música percorre o espaço guardado” – frases-poemas que embalam seus sonhos e são, ao mesmo tempo, ferida e sutura, perfuração e cicatrização.  

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Da dramaticidade das rendas – passando pelas tramas, urdiduras, tessituras, véus e palavras – um mundo se revela na subversão do gesto de uma artista que transfigura imagens, mapas e cartografias, recriando no burburinho do tempo a dimensão de uma herança que se dá pela transmissão sensível, como na citação de Goethe, lembrada por Freud: ”Aquilo que era de seus pais herda-o, mas faça-o teu”. 

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Tudo está disposto, inclusive o mistério: nuvem, encontro, silêncio, página em branco, espaçamento para o impossível. Se “a casa da mãe acolhe as memórias rasgadas” – e aqui invocamos Wally Salomão, para quem a memória é uma ilha de edição – podemos sentir o enigma de uma vida entre palavras guardadas e segredos íntimos, na reverberação de presenças e ausências.  

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Na imagem da avó com o sorriso da mãe, as fronteiras se borram: lembrança e esquecimento, aparição singular como marca de um inacabamento constitutivo ou aquilo que excede a signficação e, justo por isso, pode ser potência para repensar mundos. O gesto de artista de intervir sobre a própria história cria texturas e espessuras, espaçamentos e fendas que revelam outras histórias e possibilidades, para que os sujeitos se apropriem do sentido de suas próprias existências. 

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Da estranheza que a arte sustenta podemos criar um lugar movente da experiência: um modo de escrever a extimidade – uma ideia lacaniana, que diz do ponto de onde o mais único aparece fora –, experiência que se dá antes na sobrevivência das imagens e da palavra e, em seguida, no gesto de invenção artística, cumplicidade entre testemunho e ficção de si: vibração sutil, oscilação da vida por um fio, inscrição de uma existência no mundo.

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“Em algum momento antes de mim” enuncia um depois que parece afirmar que a memória possui uma estrutura na qual passado, presente e futuro, amalgamados, se estendem um sobre o outro, formando uma tessitura que rompe definitivamente com a ideia de linearidade do tempo. A trama entre imagem e palavra que aqui se revela é composta por traços e marcas memoriais, e também pela transmissão que beira o indizível e, no entanto, se dá generosamente como fulguração e beleza de uma vida, com a dimensão da experiência interior assim revelada por Georges Bataille: “Inacabamento, ferida, miséria que invoca a incógnita que somos para nós mesmos: infinitamente frágeis, trêmulos e conscientes dessa fragilidade”. 

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Bianca Coutinho Dias 

2023

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